14 de set. de 2013

Sérgio e as zonas de conflito

Ao final da leitura da biografia de Sérgio Vieira de Mello, O homem que queria salvar o mundo, de Samantha Power, experimentei uma mistura de sentimentos muito familiares e intensos.

O primeiro deles, naturalmente, de admiração.
Admiração, acima de tudo, pela pessoa que Sérgio foi e pela luta que empregou para salvar refugiados, devolver-lhes a dignidade perdida em conflitos, mediar acordos de paz e reconstrução de regiões afetadas por guerras.
Sérgio era humilde e ponderado. Procurava entender a natureza dos conflitos e dos lugares onde punha os pés, antes de se posicionar. Colocava sua experiência pessoal à serviço da paz e das populações necessitadas, sem que isso representasse um entrave nas políticas de reconstrução e retorno de refugiados. Era um negociador poderoso porque procurava, literal e metaforicamente, falar a mesma língua de seus interlocutores, e o fazia com extremo charme. Até sua vaidade pessoal, que o fazia vestir-se impecavelmente até entre ruínas de guerra e escovar os dentes com garrafas de água evian, era justificada na busca por devolver dignidade àqueles que haviam perdido. Para ele, demonstrar dignidade era transmitir dignidade.
Sérgio encantou George W. Bush a ponto de o presidente dobrar o tempo da curta reunião entre os dois pouco antes da invasão ao Iraque em 2003. Sérgio encantou Milosevic e Karadzic, reconhecidos genocidas, procurando reduzir seus ataques durante a guerra na Bósnia, em 1993, e no Kosovo, em 1999. Ao mesmo tempo, parava para escutar pacientemente o sonho de uma senhora bósnia, refugiada pela guerra, de que se tornaria uma nuvem para retornar à sua terra, desfazendo-se em chuva para lá ficar.

Outros sentimentos paradoxais são de esperança e descrença.
Descrença pela forma como ele morreu. Preso aos escombros do Hotel do Canal, base das Nações Unidas em Bagdá. Uma bomba facilmente explodida por um suicida em um caminhão assassinou 22 trabalhadores da ONU em um momento que inaugurou a etapa mais anárquica do Iraque desde a queda de Saddam. Sérgio não foi capaz (ou não queria acreditar) de identificar a animosidade local frente à delegação da ONU. Diferente de quase todas as outras situações de guerra às quais ele se fez presente sob a bandeira das Nações Unidas, uma boina azul em Bagdá já não representava neutralidade.
Há quem chame o atentado do Hotel do Canal de "11 de Setembro da ONU".
De fato, a instituição nunca mais foi a mesma. Mas não foi o atentado que provocou isso, e sim o contrário. Ao final de sua vida, Sérgio alertava para a crescente falta de diálogo e coesão entre os membros do Conselho de Segurança e, principalmente, da falta de vontade política de fazer da ONU um foro definitivamente democrático e representativo.
A última década da instituição é uma década perdida.

Por outro lado, mesmo que hoje não consigamos identificar com clareza os frutos do trabalho de Sérgio, há elementos positivos na história que servem de alento e nos alimentam de esperança.
Sérgio era, também, um filósofo aplicado que articulava pensamento e ação como poucos. Sua trajetória ensina que grandes mudanças levam tempo e só se realizam em campo. Não há burocracia, lei ou resolução que se preencha por si.
No Timor Leste, por exemplo, o brasileiro chefiou o governo provisório e, contrariando a resolução das Nações Unidas, passou não apenas a delegar funções aos timorenses, como a transferir gradualmente o poder à população.
Sérgio aprendeu (e ensinou) a importância da percepção do tempo em qualquer ação. A curto prazo, qualquer ação tomada precisa estar definida sobre um cronograma. Entre o referendo promovido pela ONU no Timor, em 1999, que apontou o desejo da população local pela independência da Indonésia, e a efetiva independência, em 2002, por pouco o trabalho não foi jogado fora. Passados alguns meses do estabelecimento do governo provisório e da acolhida dos leste-timorenses aos boinas azuis, a sensação local era de que o colonizador havia apenas mudado. Foi a sensibilidade de Sérgio ao tempo e aos anseios populares que fez ele definir prazos concretos.
Ao mesmo tempo, a sensibilidade dele com o tempo o fez aprender o valor da paciência.
O pragmatismo veio a se tornar uma marca pessoal. Ele dizia que deveríamos nos desapegar dos objetivos de conquistas em nosso tempo. Uma coisa era ter objetivos e metas. Outra era, em função delas, perder de vista as etapas que compunham cada objetivo.

Também senti tristeza e alegria.
Uma alegria descomunal por encontrar inúmeros pontos em comum entre os valores de Sérgio e os meus. Por identificar características pessoais e descobertas semelhantes.
Também por descobrir esses mesmos pontos em comum em pessoas marcantes que conheci em minha vida. Amigos queridos foram lembrados em diversas passagens. Memórias emergiram em profusão.
Alegria também porque a trajetória de Sérgio alimenta muitos dos meus sonhos.
"Caramba! É possível", exclamei tantas e tantas vezes.
Tristeza profunda por termos perdido uma pessoa como ele. Sérgio foi reconhecido por onde passou. Mas foi reconhecido em campo, pelas pessoas por quem trabalhou a vida toda. Foi declarado mártir do Timor Leste sem que se fizesse média em torno do seu nome.
Uma passagem marcante foi no momento de sua saída do Timor. Sem alarde, sem grandes cerimônias. Sérgio cumprimentou seus parceiros leste-timorenses, agora donos de seus destinos, entrou no avião e partiu. Quando o avião levantou vôo, pôs-se a chorar, em soluços, no colo de sua namorada e parceira de trabalho.
Era um ser humano formidável.

***

Mas a tristeza pela perda de Sérgio "foi a nossa tragédia", diz um de seus melhores amigos na passagem mais especial do livro.
"A tragédia dele foi morrer sem alcançar o equilíbrio na vida que os adultos chamam de felicidade".
Esse é o último dos grandes sentimentos que me foram despertos pelo livro.
Angústia.
Uma angústia muito grande pela humanidade e falibilidade que a vida de Sérgio escancara. E pelas inúmeras encruzilhadas. Nuas e cruas.
E durante todo o livro, fiquei com a imagem da "zona de conflito" martelando em minha cabeça.
Para além dos campos de refugiados, das regiões afetadas por guerras, dos campos de minas terrestres, das centenas de mortes por fome, frio, balas e facões, pensei nas "zonas de conflito" sobre as quais transitamos durante toda a vida. E quais batalhas decidimos travar ou não. Que metáfora fantástica!
Sérgio morreu a dois meses de sair de Bagdá, planejando o casamento com sua namorada e a concepção de uma filha. Ao mesmo tempo, divorciava-se de sua primeira esposa depois de vinte anos de casamento e ausência e dois filhos adultos.
Sua dedicação de 34 anos à ONU e às causas humanitárias implicou na escolha pela relação distante com mulher e filhos. Por este ângulo, a vida de Sérgio foi triste, porque não conheceu tão bem seus filhos, não conviveu com sua mulher, não criou raízes.
Ele não tinha a pretensão de se tornar o secretário-geral que muitos diziam que seria. Vivia o conflito entre o desejo de mudar de vida e a obediência à causa. Ao ir para Bagdá, dizia não querer, mas que não poderia negar o pedido do chefe.
Seu conflito era maior porque implicava, mais do que uma simples escolha entre sim e não, na entrada de um terreno eminentemente pessoal, onde ele pouco ou nunca havia transitado.
Em outra passagem interessante, a autora do livro conta que para levar adiante o projeto de transição do governo Sérgio precisou "ser mais leste-timorense que os próprios cidadãos do novo país".
A batalha dele era, quase sempre, a batalha dos outros.

***

Deixo aqui a frase com a qual terminaria o texto e que escolhi colocar antes: não sei qual batalha vale mais na vida. Acho que ambas.
Esse livro desfez uma série de nós pessoais e, em outra medida, amarrou muitos aspectos importantes.
Pensei um tanto em meus amigos que escolheram batalhas eminentemente pessoais. Pensei outro tanto nos que escolheram as eminentemente "dos outros".
E pensei nas minhas batalhas. E em quais entro e não entro. E de que natureza são.
O fato é que independente disso tudo, e Sérgio nos mostrou, não há solução possível, seja qual for a batalha, se não entrarmos concretamente em campo.
Houve momentos em que ele escutou críticas sobre o trabalho de campo das Nações Unidas, muitas vezes feitas pelos próprios membros da instituição, que prontamente rebatia com o argumento de que era fácil criticar de um gabinete na 1ª Avenida em Nova York. Difícil era pisar na terra e entrar no mundo real, com nuances, condições e experiências. E é. E é.
Os incautos diriam que ele sucumbiu por estar no olho do furacão.
É uma forma pobre de enxergar.
Sérgio não apenas pisava em campo, mas o fazia com extrema convicção. Era uma escolha e isso, muitas vezes, ajudou pessoas de sua equipe a se sentirem mais seguras. Durante o período na Bósnia e no Kosovo, se recusava a vestir colete à prova de balas, porque a população não tinha esse privilégio e ele jamais estabeleceria vínculos com uma barreira desse tipo.
Sempre foi uma escolha mergulhar intensamente na experiência.
Nas horas em que permaneceu vivo entre a explosão e o último suspiro, entre o chão e a laje de seu escritório no Hotel do Canal, Sérgio perguntou como estava sua namorada, que estava a poucos metros de sua sala no momento da tragédia. Perguntou como estava sua equipe. E pediu para tirarem-no de lá.

Se ele não estivesse naquele e em todos os outros momentos de sua vida, não estaríamos lembrando.
Sérgio se fez presente. Sempre.

10 de set. de 2013

Muricy: Perdão, Gratidão e Trabalho

Ele está de volta.
Depois de pouco mais de quatro anos e um abismo entre o clube modelo de gestão, campeão de tudo, soberano, pioneiro e o clube perdido administrativamente, mergulhado em mesquinharias políticas e lutando para não sofrer a maior queda de sua existência.
Muricy teve uma primeira passagem pelo São Paulo ainda precoce. O clube sofria um vácuo de comando em campo com a perda de sua maior figura do banco, Telê Santana. Cria da casa, o treinador que hoje volta ao Morumbi, era lapidado para substituir Telê aos poucos.
Telê sofreu uma isquemia e Muricy precisou assumir.
Chegou a ser campeão da Copa Conmebol, ainda comandando o famoso Expressinho, mas o término da carreira de seu Mestre, somada às consequências da perda do Tri da Libertadores, em 1994, dificultaram o jovem treinador.
E Muricy foi embora triste, sabendo que voltaria.
Como se ir fosse necessário para voltar.

Mais de uma década depois, gabaritado, campeão por onde passou, ele voltou.
Chegou com fome para comandar um time campeão.
Soube, como poucos, manter um grupo com fome e foco.
Sofreu com as perdas obsessivas da Libertadores.
Foi conquistando Brasileiros e sãopaulinos.
Quando era quase unânime nas arquibancadas, caiu pelas mãos hipócritas dos bastidores.
Saiu pela porta dos fundos. Triste.

Sua queda decretaria o retorno das vacas magras.
Uma turbulência sem precedentes atingiu o clube.
Perdas! Muitas perdas!
O clube perdeu o Morumbi na Copa.
Perdeu a comissão técnica fixa.
Perdeu Turíbio, Carlinhos, Rosan.
Perdeu Marco Aurélio Cunha.
Perdeu clássicos. Virou freguês.
Perdeu o respeito.

Hoje, Muricy voltou.
O cenário: ídolo em fim de carreira e sem a confiança que o marcou em mais de 20 anos de São Paulo. Craque-aposta desacreditado. Artilheiro em depressão. Diretoria embriagada.
E Muricy voltou feliz, sorrindo.

A entrevista de agora há pouco foi uma aula de perdão, de amor, de gratidão.
Muricy nunca foi político.
Nunca será. Só quer vestir o boné, pisar no gramado e trabalhar.
Não quer saber de esfregar na cara de seus antigos detratores e novos-velhos patrões o currículo e a vendeta. Quer participar de mais um momento importante da história do clube. Quer ajudar com o que tem para oferecer. Quer olhar pra frente sem lamber feridas.
E não é só o perdão. É mais que isso!
Muricy é magnânimo ao lembrar que mais do que o clube que o demitiu, chutando-o para fora sem honrarias, o São Paulo é seu berço, sua casa. E não seria essa a verdadeira relação familiar que conhecemos em nossas respectivas casas?
Uma lição de amor!
Uma prova de que é o cara certo.
São Paulo e Muricy foram feitos um para o outro.

6 de set. de 2013

Iraque, ONU, EUA, mundo e Síria

É triste, para não dizer decepcionante.
Se dez anos atrás não nos surpreendemos com as mentiras contadas pelo grupo de extremistas sedentos por guerra para justificar a invasão ao Iraque, hoje ficamos boquiabertos com um Nobel da Paz articulando mais uma missão bélica no Oriente Médio.

O grupo que formava o governo norte-americano era composto por Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Colin Powell, Condolezza Rice e George W. Bush. Foi dessa cúpula que saiu uma das ações mais desastrosas e destrutivas da política internacional. A começar pela sede de vingança refletida na "Guerra ao Terror", que marcou toda a ação norte-americana depois das duas torres.
Em dois anos, os Estados Unidos fizeram de tudo: invadiram o Afeganistão em uma procura insana por Osama Bin Laden, alteraram dramaticamente os esquemas de segurança em aeroportos de todo o país (e, por tabela, de todo o mundo), criaram leis (Patriot Act) internas de invasão de privacidade e restrição de liberdades garantidas pela Constituição, associaram a organização terrorista Al Qaeda a governos autoritários, como o de Saddam Hussein, plantaram notícias falsas sobre terrorismo químico (quem não se lembra da famosa carta com Antrax, enviada por meio do serviço postal americano?), inventaram que o governo de Bagdá tinha capacidade de atacar física e quimicamente seus vizinhos ou mesmo a Terra dos Livres, desarticularam o sistema diplomático da ONU e convenceram governos europeus (Espanha e Reino Unido) de que valia o esforço invadir o Iraque para "promover a Democracia".

A diplomacia e, mais especificamente, a ONU se dividem entre antes e depois da invasão.
Antes de março de 2003, o Conselho de Segurança e o poder de veto dos membros permanentes era soberano. A Assembléia Geral representava um foro legítimo de discussão. As agências tinham respaldo para trabalhar e, ainda que a burocracia fosse um entrave, colhiam resultados.
Havia um processo de amadurecimento em curso.
Somália, Ruanda e Bósnia, desastres humanitários e políticos, precederam Kosovo e Timor Leste, pequenas vitórias de um sistema que dependia de boas cabeças e bons corações.
O melhor exemplo de boa cabeça e bom coração foi Sérgio Vieira de Mello. Dedicado durante mais de trinta anos à bandeira da ONU. Acreditava ferrenhamente na diplomacia, nos ideais humanitários, no diálogo. Participou tanto dos desastres quanto das vitórias das Nações Unidas.
Sérgio dizia que a ONU era o que os países-membros fizessem dela.
Sérgio se foi em um atentado em Bagdá, servindo à ONU, vulnerável no epicentro de uma batalha burra, abandonado pelos invasores e perseguido pelos invadidos.
A ONU se foi junto.

Impossível calcular o tamanho da perda, o tempo perdido, o retrocesso provocado.
O que vemos hoje é ainda reflexo da década passada.
A Síria, vizinha do Iraque, não é o Iraque. A mídia não é mais a mesma. A opinião pública também não.
Rússia, China, França e Reino Unido também são outros.
Os próprios americanos são diferentes. Morreram mais de 4000 americanos. Outras duas torres gêmeas absolutamente injustificadas. O Iraque não é um país melhor e mais democrático.
A ONU é algo que não se sabe bem como definir. Seu secretário-geral é inexpressivo e sem carisma.
Não há foro para se discutir as questões mais importantes da política internacional. Não há margem para uma atuação conjunta. Não há vontade política de diálogo e construção de paz por vias pacíficas.
Evidentemente não se pode colocar na conta dos Estados Unidos toda essa tragédia global.
O que se pode dizer é sobre a falta de responsabilidade e a omissão de um país que deveria ser líder, protagonista do bem. Deveria ser o primeiro a levantar a bandeira das Nações Unidas.
E Obama faz parte disso. É decepção porque jamais colocou seu país a serviço da paz.
Sobre a questão da Síria, a tragédia das mortes por ataques químicos é consequência da omissão.
Ao invés de uma postura ativa, os americanos adotam uma reativa.
É muito triste e assustador.