9 de ago. de 2014

Confesso que sequei

Inspirado pelo quase findo impedimento.org e estimulado pelo desejo de voltar às raízes deste blog, decidi escrever minha própria confissão.

Aqui um breve PRÓLOGO: secar é uma arte.
A arte de secar o adversário deveria ser mais estimulada no meio do futebol.
Em primeiro lugar, porque secar é uma extensão natural do ato de acompanhar seu próprio time. Mais do que a posição do time do coração na tabela, também olhamos a posição dos adversários. Mais do que na tabela, olhamos os adversários na temporada. Mais do que a temporada, olhamos a História.
Ao fanático e apaixonado, secar é inevitável, porque é ação que remete aos nossos próprios corações.
Nenhum secador o faz de maneira fria ou sádica (pelo menos não de início). O que importa na secagem ou secação é sempre o NOSSO time do coração, muito embora este se encontre jogando em outro dia/campeonato/divisão.
O secador é um homem cordial, na mais precisa acepção do adjetivo.

Em segundo lugar, secar é ato pedagógico. Porque nos faz infantis do bom ao mau sentido. E, ao nos levar de volta à velha infância, temos que lidar muito com aquilo que crianças de fato precisam lidar: o outro. Secar é sempre com o outro.
Como brincar no parquinho: subir o escorregador, esperar o garoto ranhento da frente descer, sofrer zoeira dos outros por não saber fazer algo, levar areia na cara por absolutamente nada, cair do balanço achando que ninguém está vendo, enfim...
Secar é ter que lidar com a ausência do objeto de desejo, na linguagem mais freudiana possível!

Por último, porque secar remete, sempre, aos nossos chegados mais queridos.
Seca-se porque você não quer ver o canalha vencedor esfregando os LOUROS no seu nariz quando sair pra relaxar e esquecer que existe futebol.
E, ao contrário, no caso de êxito, você quer ter o controle da situação. Falar de futebol quando convier, como quem não quer nada. (aqui um pequeno parêntese: o bom secador, a meu ver, é o que o faz sem espalhafatos. O cinismo do silêncio é a pior das armas desse tal bom secador. O bom secador é o que vai secar e diz que está "assistindo antropologicamente" (obrigado, irmão) à partida do rival.)
O lado bom desse último 'porquê' é que secar nos une a todos. Disse Nick Hornby que a paixão por um clube tem o poder de fazer os outros se lembrarem de você quando seu time ganha. É por aí que enveredo.
Secar também desperta compaixão, além da raiva e da inveja.
Secar é sangue correndo nas veias e artérias. Vida, portanto.

Secar é bom!

Mas enfim. Vamos à lista, à confissão!
Em ordem de uva-passa no Sistema Cantareira para uva-passa no Deserto do Atacama:

Sport x Corinthians (Final da Copa do Brasil - 2008)
Não basta estar no meio da melhor época do seu time do coração.
Você precisa ficar de olho na pior época do seu maior rival.
Com a crueldade de um romano em Cartago, você quer terra arrasada e sal no território do rival, numa versão boleira e paulistana das Guerras Púnicas.
Mas antes que o leitor se precipite, há nuances, como há na vida!
Meu time colecionava troféus no Morumbi como se fossem mini-craques da Copa de 98. Era um período sublime na vida deste Tricolor. Ainda saboreando um recente título Mundial, vinha de um bicampeonato brasileiro absolutamente inconteste. E mais: mesmo amargando derrotas tristes nas Libertadores que se seguiram ao tricampeonato continental, a hegemonia nacional apenas reforçava a tese de "Melhor Clube do Brasil".
Para melhorar o cenário, meu time não perdia praticamente nenhum clássico.
Do lado de lá, a terra já havia sido arrasada por sanguessugas próprios. O que o São Paulo fazia, vez ou outra, era rolar o bêbado ladeira abaixo.
Aquele 2008 começava para mim com duas novidades: o Corinthians na segunda divisão e uma namorada corinthiana.
Corinthianos na família nunca foram motivo de tristeza. Ao contrário: hoje sou casado e feliz com uma corinthiana, tenho cunhados corinthianos, sobrinho corinthiano, sogra corinthiana.
Mas aquela situação passada era diferente: não bastava ser, ela precisava, absolutamente DO NADA, começar a frequentar os jogos do time dela, maior rival. Fosse um joguinho ou outro de série B, ok, saudável. Mas eram jogos de mata-mata na Copa do Brasil e, pra piorar, todos eram marcados para o Morumbi, minha casa!
Aí não dá. Torci fervorosamente para São Caetano, Goiás e Botafogo. Todos fracassamos!
Contra o Sport, já tinha jogado a toalha.
O primeiro jogo, "não" vi na casa de um companheiro (secador) flamenguista, que lidava com seus próprios problemas vendo o Fluminense atropelando os melhores copeiros da Libertadores. Nós vendo o Boca engasgando na tela e, pela janela, os fogos espoucando pela cidade a cada gol do Corinthians.
No final, um mísero alento. Um fiapo de alento: Enílton (aquele), marcou no Morumbi o que Carlinhos Bala profetizou como 'gol do título'.
Semana passa. Me preparo para o tamanho da dor de cabeça que viria a seguir.
Pra amenizar, reúno-me aos meus irmãos secadores para um churrasco noturno com a tevê no mudo e a música ligada. Naquela noite o mais velho alcunhou o termo "assistindo antropologicamente".
Depois do segundo gol do Sport, antropologicamente desligamos a música.
Antropologicamente subimos o som da tevê.
Antropologicamente aplaudimos a "turma da fuzarca" na Ilha de Lost.
Antropologicamente xingamos até a última geração de jogadores do rival.
Antropologicamente roemos nossas unhas.
E antropologicamente comemoramos abraçados e brindamos àquele 2008 que ainda seria vitorioso para nosso Tricolor!

Ah...o namoro foi como o sonho do título corinthiano naquela Copa do Brasil: durou pouco. E presumo que o primeiro jogo da final tenha sido o último que ela foi no estádio.

(Cléber Machado animadíssimo com a vitória do Sport)

River Plate x Corinthians (Oitavas de Final da Libertadores 2003)
Secar é arte que vem do berço.
Coisa de família!
Desconfio que jamais vou superar meu pai nessa arte. Mas acho que a idade ajuda, porque todo ano temos, no mínimo, um jogo em que PRECISAMOS secar um rival. São anos e anos acumulando!
Estamos em um ano ingrato de nossas vidas de torcedores sãopaulinos. Tomávamos sovas homéricas de todos os rivais. Vínhamos de uma exterminação de um sonho pelos pés de Diego e Robinho e de mais um vice-campeonato paulista pelos quatro pés esquerdos da pior dupla de zagueiros que já pisou no Morumbi. No ano anterior, em duas semanas, fomos duplamente eliminados pelos alvinegros de Itaquera: Liga Rio-São Paulo (final) e Copa do Brasil (semifinal).
Era de doer.
O alento era esquecer o futebol e rumar para um descanso com a família em Buenos Aires, cidade que meu pai mais ama e neste planeta!
Mas Buenos Aires rima com River e Boca, pensava eu. E Boca e River rimam com Libertadores, pensava eu.
"Pai...é...eu andei olhando a tabela da Libertadores e pode ser que dê pra ver um jogo na Bombonera ou no Monumental. O que acha? Ainda não definiram as datas das oitavas, mas pode ser que joguem Boca e Paysandu ou River e...Corinthians (sorriso maléfico)..."
Dia 1º de Maio, uma quarta-feira, também feriado na Argentina, estamos eu, meus irmãos, meu pai e um amigo do meu pai sentados na primeira fileira da geral do Monumental de Nuñez. O amigo do meu pai vestia um casaco azul sobre uma camiseta amarela e eu não preciso dizer mais nada.
Nós vestíamos camisas do River ou da Argentina.
Mantivemos um silêncio sepulcral durante todo o primeiro tempo, que terminou 0x0.
Daí relaxamos um pouco e começamos a falar português, no que o senhor que estava ao meu lado começou a estranhar. Fui rápido e certeiro: "Corinthians és para mi o que Boca és para usted."
Começa o segundo tempo e logo Jorge Wagner abre o placar.
- Não! Eu não vim até aqui pra ver essa m.... desse time ganhar uma partida de um campeonato que eles não entendem porra nenhuma! Ainda mais de outro que tem escola na Libertadores!
Tempo vai. Tempo vai. A torcida deles silenciando os gallinas em pleno Monumental.
- Por favor....só um golzinho. Um empate que seja! Eu sairei feliz daqui!
D'Alessandro empata em linda cobrança de falta. Explosão familiar nas cadeiras do Monumental, tão parecido com nossa casa em São Paulo!
Cavenaghi, aos QUARENTA E TRÊS, vira o jogo. Um pouco do veneno deles pra eles!
O estádio convulsiona!
E voltamos para o hotel com duas Quilmes de 1 litro debaixo dos braços.
Na saída das arquibancadas, não me esqueço, os argentinos cantavam: "Mirá, mirá, mirá...saca una foto...se van para Brasil con el culo roto..."

(Bela tarde de sol em BsAs!)

Santos x Corinthians (Semifinal da Libertadores - 2012)
Tem dias que não dá.
Tem vezes que você sabe, porque conhece futebol e entende um pouco os elementos transcendentais do futebol. E porque já viu e sentiu na pele o que é ser campeão. Ainda mais de Libertadores!
O jogo era o primeiro da semifinal da Libertadores. Logo antes, o Diego Souza havia consagrado o goleiro deles num lance que se desenhava como um roteiro do Chaves. Que é sempre igual e você sempre ri.
Naquele ano não.
E naquela noite, reunido com os amigos secadores no apartamento de um deles, vi o melhor jogador da campanha do título inédito deles fazer o gol mais importante e bonito de todos. Fora de casa.
O adversário era o Santos do Neymar e do Ganso e do Muricy. Atual campeão, porra!
"Esqueçam. Eles são os campeões."
Sabia que seria xingado pelos amigos, fui xingado.
Sabia que seriam campeões, segui secando.
Mas eles foram cruéis com os secadores. Deram migalhas de esperança no segundo jogo das semifinais, mas o nosso Danilo deles tratou de pôr as coisas fora do lugar.
No primeiro jogo da final, ainda com os amigos secadores, achamos que daria. Mas se até o Boca pipoca em casa...
No dia da finalíssima (em Julho), me isolei no litoral com minha mulher (corinthiana) e minha filha (sãopaulina) dentro da barriga dela.
Acho que só escutei um rojão.
(sem título)

Palmeiras x Deportivo Cáli (Final da Libertadores - 1999)
Outra vez que não deu.
Mas a vida era mais dura naquela época. Ainda imberbe, praticamente virgem de grandes títulos e sem esperança de vê-los muito cedo.
O começo da adolescência para um sãopaulino nascido em 1986 foi bastante cruel. Você não tem idade suficiente pra dizer que VIU o bicampeonato mundial. Você vê seu time fracassando campeonato atrás de campeonato, criando e desperdiçando talentos, perdendo clássico atrás de clássico. E pra piorar, os outros eram sempre campeões brasileiros, campeões paulistas, Copa do Brasil, etc.
Restava uma única gozação em pé: Libertadores o seu time nunca viu!
Mas eis outra faceta do DIDATISMO da arte de secar ou só de invejar as conquistas alheias: você aprende, entende e gosta de um campeonato sem nunca ter visto seu time nele.
Essa foi a minha iniciação em Libertadores, muito antes de ver meu São Paulo chegar lá.
E tanto em 99 quanto no ano (e no texto) seguinte, tive o desprazer de acompanhar a Libertadores pelos pés alviverdes e alvinegros.
Convenhamos: eram dois timaços. Mas o Palmeiras, embora tão campeão da Libertadores quanto o Corinthians àquela altura, tinha Felipão no banco e um gênio absoluto ainda muito jovem no campo: Alex.
Naquela época, o campeonato aglutinava os times do mesmo país no mesmo grupo, o que fez com que a estréia desses dois aí fosse num (estranho) sábado a tarde, no Morumbi.
Essa Libertadores foi, digamos, o ponto de inflexão da minha ainda jovem carreira de secador: por um lado, tinha mais amigos palmeirenses. Por outro, o Corinthians já havia provocado dores mais profundas na minha vida de torcedor e, além de tudo, era (ainda é) o grande rival dentro de casa.
Nas quartas-de-final, eles se enfrentaram de novo em duas noites que o que mais se desejava dentro de casa era que caísse uma bomba no estádio (Morumbi) preservando apenas a estrutura.
Eu lhes digo: secar é uma arte!
Em casa, prevalecia a ordem das coisas: o Corinthians não pode ser campeão.
Na minha cabeça de treze anos: com que cara eu vou chegar na escola amanhã se o Palmeiras passar?
Alviverdes na semifinal contra o River e uma certeza: não passarão! Até tive uma esperança depois do primeiro jogo na Argentina (onde o Palmeiras foi muitíssimo ajudado pelo juiz Ubaldo Aquino, que dois anos depois voltou como Ubaldo "Carma" Aquino numa mesma semifinal entre o Palmeiras e um argentino).
Eu dizia que o Ríver era "imprevisível". Mas imprevisível mesmo era o Alex, que fez um dos gols mais bonitos que já vi, na volta, no Palestra Itália.
3a0 e minha fé, meu fio de esperança, se chamava Deportivo Cáli.
Depois de um magro 1a0 dos mandantes, o Palmeiras jogava em casa por uma vitória simples pra levar pra disputa de pênaltis.
Eu, sozinho e silencioso, com a fé de poder manter minha única chacota sobre os amigos, na frente da tevê de casa. Não estavam meus irmãos, não estava meu pai.
Estava sozinho.
Um rito de passagem, eu acho!
Evair abre o placar de pênalti. Frio na espinha.
Deportivo Cáli empata logo depois, também de pênalti. Alívo momentâneo.
(o secador sempre carrega consigo a certeza de que o que ele faz em casa se reflete, por alguma razão espiritual ou metafísica, no campo. O secador é um homem de fé, mas cheio de manias e superstições)
Aí...um pouco depois, quebrando aquele meu encanto solitário, meu pai chega em casa, se apóia na poltrona em frente à televisão e diz: "é...não vai dar não..."
Nem um minuto depois, Júnior cruza e Oséas desempata.
Foi um rito de passagem e a frase do meu pai, admito, foi o início de uma oração que só terminaria no ano seguinte. A voz da experiência ali encarnada dizendo para aquele jovem: Cresça!
Não deu.
Eles ganharam nos pênaltis.
Eu fui dormir com o coração doendo, abraçado a uma camisa do São Paulo, me perguntando por quê sofria tanto!
Pela janela, ouvia o Galvão Bueno gritando da tevê do vizinho, no último volume.


Palmeiras x Corinthians (Semifinal da Libertadores - 2000)
Para terminar essa epopéia desértica, o cúmulo do secador: torcer por um rival contra outro rival.
E como eu torci! Ah...sim...confesso!
Naquele dia eu era palmeirense até o último fio de cabelo e São Marcos era meu padroeiro. (eu NASCI no dia de São Marcos.)
Pois bem. O Palmeiras vinha defendendo seu título com um time ainda bom, mas pior que de 99. O Corinthians vinha melhor que no ano anterior.
E eu?
Bom...eu era um adolescente envergonhado por ver meu time lutando pelo título estadual e tendo que ver Libertadores do sofá pelo enésimo ano seguido.
E mal sabia que o pior dia da minha vida se avizinhava. Estava prestes a descobrir na prática o conceito de "carma". Aquele negócio de secar não iria passar impunemente!
O primeiro jogo daquela semifinal foi um espetáculo! 4a3 para os alvinegros e um show de gols "cagados"!
O jogo da volta foi um dos melhores que já vi. Top 5 sem dúvida.
O ambiente era o melhor possível: uma classe de oitava série, repleta de sãopaulinos, com três corinthianos e três palmeirenses. E os sãopaulinos TODOS virando a casaca pró-Palmeiras naquele dia. Estávamos no meio do Pantanal sul-matogrossense, cercados de jacarés e tuiuiús!
Uma televisão de 14 polegadas no refeitório do hotel foi o suficiente naquela noite.
Nunca vou me esquecer do Casagrande falando "É Júnior e Alex contra rapa, Galvão!".
O Corinthians era um time e o Palmeiras se desdobrava para igualar o confronto.
No final do jogo, Galeano, um herói, faz 3a2 e leva para os pênaltis.
O que aconteceu nós já sabemos.
Mas o que aconteceu comigo foi que, palmeirense mesmo, fui até o fundo do hotel, em silêncio, secar o Corinthians.
Sozinho.
Só escutando os gritos.
A explosão da perda do pênalti pelo Marcelinho Carioca foi como se meu time tivesse ganhado!
Aquele dia foi a secação no estado da arte!


Eu sequei, meus amigos!
Confesso!

2 de ago. de 2014

Vovô

O velho a caminhar na areia.
Céu escuro como telhado, cruzeiro apontando o sul no horizonte do mar, grãos ainda quentes do dia a grudar nos pés.
Sereno.
Aquele senhor, alegre e enigmático, tramando qual uma criança sua próxima aventura.
Cabelos brancos, jovial, embaralhando palavras e contando piadas para si mesmo.
Rindo só.
Nas mãos, um vidro de palmito cheio de cruzeiros.
Qual dos netos iria achar aquele baú?
Ao velho mais importava o que se passaria entre o anúncio da caça e o tesouro propriamente dito.
Vovô queria era farra das dúvidas dos netos. Queria tê-los todos aos calcanhares, pedindo uma dica, uma pista, um trocadilho que fosse facilitar a busca.
Ria-se alegremente.
Define latitudes e longitudes, certifica-se de que está mesmo só ali na areia: cava na areia com uma pá emprestada escondido dos netos e se torna o mais novo pirata daquelas praias, ocupando o posto do velho "Capitão Gancho de Esquerda".
Ri mais um tanto daquele dia que viria a seguir e trata de esconder bem as possíveis pistas deixadas para trás.
Antes ir embora, caminha até sua porção favorita de praia, espera que a onda venha lhe molhar os pés e agora só sorri. Aquele sorriso inconfundível.
Naquele instante, tantos eram os netos que lhe chegariam aos calcanhares no dia seguinte, até deixa uma rara lágrima lhe escorrer.
Vovô vivia por aqueles momentos entre a caça e o tesouro!
Feliz.