23 de mai. de 2015

Rogério Ceni

Nunca carreguei comigo a ilusão de que sua presença em campo seria eterna, infinita.
A despeito do seu apelido, os últimos 18 anos com você dominando a camisa 01 foram a experiência mais terrena, mais concreta, mais humana que vivenciei.
É evidente que há algo de transcendental, que há coisas que me escapam a compreensão, mas você como nosso arqueiro foi um fenômeno maravilhosamente humano.

Em primeiro lugar, porque finito.
Para mim e (acho que) pra maioria dos tricolores que rotineiramente subiram as rampas do Morumbi pra te ver jogar, as perguntas íntimas eram as mesmas: até quando? até quanto?
A celebração de seus recordes empilhados ano após ano não revela nada além de sua essência mais humana. Fosse você infinito, o que haveria de celebrar?
Aliás, você incorporou como poucos este espírito sãopaulino: é justamente porque o tempo passa, porque as coisas acabam, que há de se aproveitar os momentos que ocorrem diante e ao redor de nós. E que há de se registrar a História e celebrar ídolos.
Passado, presente e futuro.
O São Paulo é isso e você sabe que não poderá deixar de sê-lo. ("O São Paulo parou no tempo", você nos alertou um dia!)
No campo de jogo, você era o cara que mais tentava domar o tempo. Ou o Tempo!
Na iminência de eliminações dolorosas, lá ia você até o meio-campo pra tentar inventar alguma coisa, muitas vezes no desespero. Lá ia você cobrar um lateral já nos acréscimos...
E você sabe melhor que a maioria dos jogadores de futebol o quanto dói perder jogos e até títulos nos minutos derradeiros!

Do lado de cá, devo ter presenciado uns duzentos jogos da minha infância/adolescência até hoje. Sempre (raras as ausências) com você na pequena área.
Hoje vejo como foi fundamental na formação do meu caráter essa percepção do tempo passando.
Foram, por exemplo, dez obsessivos anos esperando pra jogar uma Libertadores.
(quando o Marcelinho Paraíba fez aquele gol no Mineirão, a primeira coisa que disse pra mim foi "vamos voltar pra Libertadores, caralho!").
Foram dolorosos anos como freguês dos nossos maiores rivais, ou vendo-os abocanhar títulos atrás de títulos. E também vinham aquelas mesmas perguntas íntimas: Quando? Quanto?
Ao mesmo tempo, crescer no Morumbi. Ao lado dos irmãos, do pai, dos amigos...
Aquela experiência única, que sempre, SEMPRE, me devolve à infância, de passar pela boca da arquibancada e me deparar com imensidão do nosso estádio! Eu perco o ar, qual um menino, toda vez que faço isso.
E o tempo vai passando, a memória vai crescendo, a nostalgia se torna presença constante.
Hoje eu anseio levar minhas filhas para conhecer nossa casa.
Então é isso: você foi, talvez, o grande condutor dessa experiência temporal e mundana para mim.

O segundo elemento desse fenômeno demasiadamente humano é a constante lapidação a que você se submeteu nestes anos todos.
Foi uma lapidação simbólica e, também, corporal.
E a vida é isso: criar-se, conhecer-se, recriar-se.
A seu respeito, sempre digo duas coisas: 1) você não é craque inato, é craque construído. Cotidianamente, obstinadamente. 2) você é o maior ídolo do São Paulo Futebol Clube não só pelo currículo recheado de vitórias, mas também pelas inúmeras derrotas. Você ganhou E perdeu mais que qualquer outro jogador nosso. Mas sobre isso eu falarei mais adiante.

Quando falo em lapidação, lembro de quão profissional você foi durante toda a carreira: você fez por merecer chegar aos 42 jogando em alto nível. Sempre se cuidou, sempre treinou com afinco, nunca reclamou. De novo, você sabe melhor do que ninguém o que significa a passagem do tempo, então tratou de cuidar muito bem da própria saúde. Não é fácil!
Pro torcedor aqui, a imagem era clara: os cabelos foram rareando, algumas manias foram se reforçando, as rugas foram aparecendo, a pancinha e a corcunda também, a cara de cansaço depois dos jogos. Nunca vi isso com negativismo, mas com naturalidade. Envelhecer é bacana!
Seu talento foi desenvolvido com trabalho, com afinco, sem acomodação. Bater faltas e convertê-las em gols, afinal, é isso. Defender pênaltis ou ter bom reflexo também.
Eu lembro de um gol que você sofreu num jogo contra o Guarani, em 1998: você saía mal do gol (lógico que nossa defesa não ajudava)!
E você teve, talvez, mais partidas espetaculares como goleiro depois dos 32 do que antes! Ou talvez seja só minha memória falhando.
A outra lapidação foi a do caráter: você não foi craque inato, mas foi líder nato e sempre foi correto!
Condução por exemplo na maior parte do tempo e, quando necessário, por autoridade (nunca autoritarismo).
Antes disso, também soube esperar sua hora, sendo pupilo de caras como Zetti, Telê e Muricy. Nem todos conseguem esperar. Haja humildade!
E o que vejo hoje é o respeito que você desperta nos mais jovens. Quando o Lucas despontava, ele dava tímidas entrevistas dizendo da importância de ter você como líder, como companheiro de clube, como amigo. Difícil lembrar de algum jogador que tenha te conhecido e não gostado.
O último e, talvez, principal elemento dessa lapidação é que você sempre escolheu ser protagonista de sua própria vida. Nem todos conseguimos fazer isso: assumir responsabilidades, encarar erros de frente e seguir tentando.
Conhecer-se é uma aventura difícil!
Colocar-se no mundo é mais complexo do que pode parecer.
E você se fez presente. Sempre se fez presente!

No campo de jogo, explico em metáfora: tenho um mantra sobre a Libertadores. "Pra ganhar uma Libertadores, é preciso perder uma Libertadores".
Tanto é assim que vejo nossas campanhas de 2004 e 2005 como uma só.
É preciso se apropriar da nossa trajetória para ter êxito e paz interior!

Por fim, o último elemento: ganhar e perder.
Mais do que a frieza e crueza dos números, bons e ruins, em todos estes anos valeu a forma como vieram as vitórias e as derrotas.
Apesar de você ainda pagar a pena por uma frase mal pensada e mal colocada na juventude ("Foi a melhor atuação de um goleiro na Seleção nos últimos tempos..."), é impressionante a sua capacidade de perder com altivez e assumir o que lhe cabe como capitão do time há quase duas décadas.
Eu sinto que aprendemos juntos a perder primeiro para ganhar depois. E sabemos que as derrotas sempre foram mais pedagógicas.
Perseveramos, tivemos paciência, choramos na solidão do travesseiro e das pequenas áreas e  arquibancadas e, na hora precisa, gritamos juntos pelas conquistas.
Você incorporou o clube como poucos jogadores na história desse esporte apaixonante e isso se refletiu na intensidade e na vibração do ganho e da perda.
Quantas boas memórias! E quantas cicatrizes!

Eu só tenho a te agradecer pela incrível jornada que tem sido torcer pelo nosso São Paulo, pelo goleiro-artilheiro que só nós temos!
Eu nunca tive a ilusão de vê-lo na pequena área eternamente.
Por isso pude aproveitar tanto!
Obrigado, M1TO!
Saudações Tricolores!


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