17 de mar. de 2016

Esquerda - Um textão

Muito além do escárnio exposto por acontecimentos que se empilham sem que a gente consiga processar a informação, muito além da tragédia institucional, política e econômica provocada pelo governo Dilma e, também, pelo governo Lula, me ponho a pensar no delicado momento que a esquerda brasileira enfrenta.
Falo como alguém que se considera de esquerda, embora, muito humildemente, tenha a ciência de que isso tem mais validade no campo do pensamento que no campo da ação.

(Vamos estabelecer, de forma algo rudimentar, que esquerda é o lado que se posiciona, na gangorra "Liberdade X Igualdade", mais na segunda que na primeira. E que, dentro deste campo, há infinitas possibilidades de pensamento e ação.)

A esquerda brasileira precisa encarar boas horas num divã.
Uma necessidade que se torna urgente nesse momento em que ela própria, a esquerda, passa a ser confundida com as ações descabidas do governo, de políticos ou mesmo de militantes.
Mas veja bem, caro leitor: o divã metafórico se faz urgente, especialmente, porque a esquerda brasileira parou de olhar para si. Somos um bando a apontar dedos, incapazes de assumir responsabilidades, incapazes de estabelecer margens e limites claros de conduta e de ética. Não estamos usando a mesma régua que usamos nos outros para medirmos a nós mesmos.

Poderia dizer que os governos recentes do PT sequestraram a esquerda.
Poderia...mas essa seria apenas mais uma forma de colocarmo-nos como vítimas.
Ocorre, na verdade, que viemos paulatinamente entregando voz e discurso a um governo que, de esquerda, teve muito mais marketing que debate profundo e ação consistente. Como se o pensamento da nossa esquerda tivesse deixado as cadeiras da PUC ou da FFLCH e sentado nos bancos da ESPM (nada contra os primeiros ou a segunda, apenas uma constatação).
É compreensível: era vocação do PT e de outros partidos do campo da esquerda. O diálogo com os movimentos sociais, a capacidade de articulação nas ruas, a conexão com os problemas mais crônicos da sociedade brasileira, os olhos e ouvidos abertos para os anseios do povo.
Ocorre que o marketing ultrapassou a utopia em termos de referencial. E nisso, o apego pelo poder e pela posse do discurso de esquerda viraram prioridade.
Nisso, também, se perdeu aquela bela metáfora do Galeano sobre a utopia. Da referência no horizonte que nos conduz, sempre como algo maior do que nossos umbigos.
A esquerda foi pega e presa nessa mixórdia.

A foto da babá no último domingo e as discussões que se encadearam depois da exposição dela indicam algo de muito apodrecido em nosso pensamento.
O discurso (marketing) se tornou protagonista e a realidade mera coadjuvante. No afã de defender uma posição e demarcar uma visão de mundo, ocupamos o lugar e a fala de quem nós julgamos ser os oprimidos. Será que nos acostumamos tanto com essa ideia torta de "consciência social" depois dessa metamorfose que o governo petista promoveu dentro da esquerda?
Na minha pequena experiência em uma ONG que trabalha com moradores de favelas, com pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, foram incontáveis as situações em que o protagonismo era desviado para o discurso ou para aqueles que deveriam mais ouvir e ver do que falar. Eu mesmo como voluntário, muitas vezes caí nessa tentação que muito alimenta o ego.
Marketing para si faz um bem danado!

E para piorar esse quadro, nossa esquerda encara hoje a ferida narcísica de ver a rua ser ocupada por gente que não faz a menor questão de alimentar esse ego. Alimentar o nosso ego!
As manifestações recentes, tão fundamentais para o amadurecimento da nossa democracia, foram diminuídos por racionalizações ridículas como: "diga-me com quem protestas que te direi quem és" ou "as manifestações contra o Collor foram maiores em termos relativos porque a população era menor na época" ou "elite golpista não passará".
Cuidado, esquerda, para não resvalar no autoritarismo de pensar que a divergência não é cabível!
Cuidado com o descolamento da realidade, de achar que tudo é conspiração de elites, de imprensa golpista, da Globo.
Cuidado com a paranóia.

Concordo que estes 'óculos' que vestimos nos faz enxergar sutilezas como as filas para comprar bilhete do metrô (a elite não tem bilhete único e não anda de transporte público). Ou como a presença maciça de gente branca nas ruas. Concordo que podemos procurar entender a representatividade das manifestações.
Mas nossas conclusões, tão precipitadas, nos cegam.
A esquerda parou de pensar e de propor para se tornar uma reles "Fiscal de Melanina", termo que empresto das redes sociais.
É preciso ir muito além disso.
É preciso olhar pra dentro e pôr os pés no chão.